sexta-feira, 14 de julho de 2017

DANÇA: RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E PODER

O texto a seguir foi publicado na Revista Dança, do Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA, v. 4, n. 2, p. 76-86, jul./dez. 2015. 
Dança: Relações entre Política e Poder

Arthur Marques de Almeida Neto
Professor do Depto. de Artes Cênicas - UFPB
Doutor em Comunicação e Semiótica - PUC-SP
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Estudos Contemporâneos Avançados em Dança - UFBA
Licenciado em Dança - FAV-RJ

Resumo
A relação entre dança, política e poder é considerada como parte da própria história da dança. A sua evolução como arte cênica promove exemplos variados de como ela esteve – e está – conectada com aspectos políticos e de (re)a rmação de poder, seja qual for o sistema de governo. O argumento revisa alguns exemplos que explicitam esse relaciona- mento. Além disso, considera a necessidade de se produzir dança tendo em vista as pos- sibilidades que esta arte proporciona, enfocando a interpelação de sujeitos que constrói relações com processos identificatórios. Nesse viés, a dança exerce poder quando usada como instrumento político, estando devidamente conectada a cultura de um grupo cultural ou Estado. Assume-se o fazer da dança como a materialização de um projeto ideológico e reflete-se sobre as consequências, razões e propósitos do seu uso como um sistema que aciona sentidos de identificação.

Palavras-chave: Dança; Política; Poder; Identidade; Ideologia.

A arte da dança é passível de construir relações com processos identificatórios. Isso implica que, como expressão artística, a dança pode estabelecer relações diretas com sujeitos e ser um meio para reafirmar a identidade de um grupo cultural, apresentando implicações políticas e de poder. Propor um trabalho de dança com aspectos de uma determinada cultura pode fazer com que o indivíduo que assiste se reconheça como sujeito participante dessa cultura, estratégia identificatória tratada pelo teórico americano Mark Franko (2002) como poder de interpelação. Ele consiste na capacidade que a dança tem de interpelar indivíduos como sujeitos de um grupo cultural.

No argumento que se segue, concorda-se com Bourcier (1987) e Portinari (1989) ao assumir que produções em dança da Renascença francesa exemplificam como a dança foi instrumento usado com a finalidade de enaltecer o monarca, colocando-o como personagem em evidência com poder acima de tudo e de todos, em especial na corte de Luis XIV. As danças da corte desse período também faziam parte de um jogo social em que seus membros - cortesãos e aristocratas - eram peças importantes. Como prática social, a dança era parte da educação do cortesão, e nos salões dos castelos, através das danças dos bailes, oportunidades eram promovidas para que os nobres pudessem se aproximar, conhecerem-se e resolverem arranjos, como firmamento de alianças políticas e casamentos reais. A dança interpelava os indivíduos como sujeitos distintos, conectando-os como participantes do jogo social da corte. 
As danças nacionalistas de Martha Graham das décadas de 1930 e 1940 são também citadas como exemplos do uso da dança para construção de processos identificatórios através da interpelação. Graham trabalhou com aspectos da cultura americana em suas danças desse período, conectando indivíduos como sujeitos pertencentes à cultura nacional. Elas são criadas em um momento histórico de crise política, social e econômica, em que os Estados Unidos e a cultura americana precisavam urgentemente de reafirmação (PHILP, 1998). Essa atitude é compreendida como uma estratégia ideológica, no sentido proposto pelo filósofo Louis Althusser (in ZIZEK, 1996), quando a ideologia é entendida como um fazer de acordo com as crenças do sujeito e sua materialidade é expressa através de suas ações. 
Reflete-se sobre o uso da dança e suas consequências como um instrumento político para a reafirmação de identidades, ao auxiliar na construção de processos identificatórios, através da interpelação. Ainda, chama-se a atenção sobre a responsabilidade do artista quando o fazer da dança é considerado como uma materialidade da ideologia: um fazer que se conecta com as crenças e os valores de um sujeito.
Dança e nacionalismo
A relação entre a arte da dança e política nacionalista é tratada como algo que existe desde antes do estabelecimento da dança como uma chamada arte teatral ou espetacular  (BOURCIER, 1987; COHEN, 1992; PORTINARI, 1989). 
Na Renascença francesa, para os membros da corte e da classe aristocrática, a dança era uma prática social que fazia parte das festas nos salões dos castelos e da própria educação do cortesão, que precisava saber dançar para se integrar socialmente. Ela era um elemento importante na rede social: suas criações eram geralmente motivadas por razões políticas (exemplos: arranjos de casamentos reais para alianças entre reinos, enaltecimento da figura do rei e/ou do país para a construção de identidade nacional, entre outras). 
Os balés da corte passam a ser dançados por profissionais, ao invés dos nobres cortesãos, transformação gradual que acontecia nos próprios salões dos castelos, dado o incremento dos passos pelos mestres da dança que também organizavam os bailes da corte. No final do século XVIII, o rei Luís XIV abre os palcos dos teatros franceses para que as danças da corte - agora realizadas por profissionais - pudessem ser realizadas.
Diferenciar a dança que o povo e os membros da corte realizavam da dança praticada por profissionais nos teatros foi uma estratégia que a alçou ao patamar de uma arte teatral ou espetacular. Essa mudança teve consequências para o entendimento de dança, inclusive, que ainda se tem hoje: a que é feita pelo povo é popular, e a dança dos teatros, arte, algo que diferencia, distancia, hierarquiza e menospreza a dança realizada pelo corpo que não é especialista.
A dança teatral ou espetacular precisava ser estrategicamente separada da dança feita pelo cortesão ou pelo povo, pois ela, como um instrumento ideológico, era uma representante simbólica do poder absolutista.
A paixão de Luís XIV pela dança e por tudo o que ela representava enquanto registro simbólico das relações estratificadas de poder em seu reinado era tanta, que, em seu primeiro ano de reinado, propicia um dos mais importantes feitos na história desta arte: a fundação da Academia Real de Dança, em 1661 (PEREIRA, in PEREIRA e SOTER, 1998, p. 223).
Como expressão artística, ela serviu a propósitos políticos nacionalistas para a corte francesa exortando o poder real, de forma adequada. A dança teatral na França renascentista colaborou com o sistema político vigente, através de temas que enalteciam o monarca. Nesse aspecto, ela lidou estreitamente com uma política nacionalista e com uma ideologia que reforçava os valores do sistema de governo vigente. Entretanto, nem todos concordam que a dança como arte possa tratar bem dessas questões, sem que seja considerado um equívoco. Lia Robatto (1994, p. 157), diz: 
Não acredito que os trabalhos artísticos, forjados em molde de uma política cultural obrigatória, possam contribuir para seus fins doutrinários. Vide os equívocos da arte sob o controle do sistema político de poder da era Stalinista, da Revolução Cultural Chinesa ou do Macarthismo.
Para a autora, a arte não deve contribuir com fins doutrinários e se torna equivocada quando serve a propósitos e sistemas políticos. Entretanto, levando em consideração o que Robatto (1994, p. 157) aponta, nota-se que a dança pode ser um excelente meio para disseminar doutrinas ou posições políticas para os que estão na disputa do jogo do poder: ela é um veículo eficiente para se tratar de assuntos ou questões políticas, uma vez que dela podem ser apreendidos aspectos ideológicos ou mesmo doutrinários. Sarah Rubidge (1989), assim como Robatto (1994), explica porque também não concorda com essa visão:
A questão é se a dança é um meio apropriado para o debate político. Questões políticas são complexas e os argumentos que as circundam são sutis. Dança política (que eu quero dizer que são trabalhos de dança os quais apontam diretamente para assuntos políticos ou sócio-políticos, não trabalhos que os apontam obliquamente) tendem a circunscrever argumentos políticos. Isto talvez seja esperado pela dança que não é, pela sua própria natureza, um meio discursivo. Ao invés disso, ela comunica predominantemente através de meios não-verbais, através do movimento, através de imagens, através do som. Tais imagens podem ser extremamente poderosas, elas são mais ambíguas que as palavras e não são particularmente apropriadas para o uso em discussões onde idéias complexas são chamadas ao questionamento (RUBIDGE, 1989, p. 27, tradução nossa).
Mark Franko (2002) e Ellen Graff (1999) têm posições que parecem tangenciar as posições de Rubidge (1989) e Robatto (1994). Ambos citam algumas danças produzidas pela classe operária nos Estados Unidos, na década de 1930, influenciadas pelo socialismo russo. Alguns dos coreógrafos da década de 1930, principalmente em Nova Iorque, usaram o sistema técnico-estético que estava sendo forjado por Martha Graham, como uma fonte para construção do movimento para essas danças. Entretanto, para Franko (2002), eles não foram bem sucedidos, pois não conseguiram abstrair o suficiente na configuração dos trabalhos: ele afirma que essas danças da classe trabalhadora (workers’ dances) eram muito ‘literais’, o que talvez seja uma referência ao caráter informativo desses trabalhos de dança, ou por eles se mostrarem muito preocupados em expressar uma mensagem política de forma objetiva, para ser rápida e claramente entendida pela plateia.
O adjetivo ‘literal’ usado para qualificar essas danças soa, de certa forma, como algo pejorativo ou como se esses trabalhos fossem ruins ou de má qualidade, na leitura que se faz do estudo de Franko (2002). O autor deixa subentendido que tratar de assuntos políticos partidários na dança de forma literal e panfletária é considerado um erro, o que vem a ser uma ideia que concorda com o pensamento de Robatto (1994).
Contudo, ambos os autores não expõem que política panfletária ou partidária não é feita apenas de forma ‘literal’ ou direta. Há outras formas de se ter um discurso ideológico em um trabalho de dança. Franko (2002), assim como Robatto (1994), expõe que algumas políticas podem ser abordadas na dança - políticas de corpo, como as de gênero, de raça - conseguindo ‘mobilizar’ a plateia. Sobre esse aspecto,
A arte tem o poder de mobilização, pois ela é capaz de contagiar o público com idéias revolucionárias, desde que consiga, pela sua qualidade expressiva, comover esse público. Para isso, sua mensagem não pode estar atrelada a compromissos temporais panfletários e circunstanciais, pois a tornaria uma arte “menor”, subordinada a rótulos ou clichês panfletários, engajada a ideologias sectárias (ROBATTO, 1994, p. 157).
Como se observa, para a autora, apenas quando apresenta ou possui o que chama de ‘qualidade expressiva’, a dança consegue ‘comover’ o público. Comoção, logo, parece ser uma característica necessária para que haja mobilização da plateia. Questiona-se, portanto, o que seria uma qualidade expressiva? Como detectá-la? Nesse ponto, arrisca-se a dizer que o título do trabalho de Robatto (1994) faz sentido, quando subintitulado de ‘a arte do indizível’: a autora não define o termo que usa, deixando a característica da comoção resolver que dança tem ou não uma qualidade expressiva. Emoção subjetiva, uma comoção pode se dar de várias maneiras e pode atingir a muitos, mas não a todos, em todos os lugares e em todas as culturas. Logo, acredita-se que esse seja um discurso vago.
Outro ponto, não menos importante, é quando a autora diz que existe o que seria uma ‘arte menor’, mesmo quando utiliza a palavra entre aspas para suavizar o termo, para se referir à ocasião em que a arte tem objetivos políticos panfletários. Além de hierarquizar a arte, o uso do termo para designar uma arte panfletária parece também acarretar em prejuízo do entendimento das razões e dos contextos em que determinados trabalhos artísticos, em especial, de dança, foram criados. 

Robatto (1994) cita que as danças produzidas na China, na Revolução Chinesa, eram equivocadas. Discorda-se da autora, pois aqui se parte de outro ponto de vista: considera-se que essas danças serviram - e muito bem - aos fins doutrinários de Mao Tsé Tung. Elas conseguiram reforçar e reafirmar uma identidade nacional chinesa, segundo os anseios do partido comunista.

A arte, em especial, a dança, foi e ainda é um meio para o Estado promover a cultura.   Como um meio de auto-afirmação do sujeito pelo viés da identidade, a cultura é também uma forma política de promoção dos interesses diretos do Estado e de suas políticas, como a de gerar lealdade à ele (ou à nação) atuando como um fator de equação social através da identificação com a pátria e com os símbolos nacionais, consistindo em uma ideologia do nacionalismo cultural (ALMEIDA NETO, 2009).

A dança foi amplamente utilizada para encenar temas ou roteiros para propósitos políticos, como foi na Renascença francesa, responsável indireta por casamentos ou arranjos diplomáticos, ou, como já mencionado, para enaltecer os soberanos. Balés da corte (ballets de cour), como um gênero de espetáculo, deram origem ao profissionalismo na dança, e sua passagem dos salões da corte para os teatros a fez evoluir ainda mais como uma arte cênica. Posteriormente, a técnica e a estética do ballet também exaltou o império dos czares e, mais adiante, serviu aos propósitos do socialismo russo, mostrando a riqueza da cultura russa e, por consequência, a soberania e o poder da nação. 
De forma semelhante, a chamada Dança Moderna Americana, com os trabalhos criados por Martha Graham, em meados da década de 1930 até meados da década de 1940, nos Estados Unidos, serviu a fins políticos nacionalistas.
Martha Graham: política nacionalista e poder na dança
Appalachian Spring (1944) foi o primeiro trabalho de dança da história daquele país a ser diretamente subvencionado pelo governo americano, sem concorrer e ser aprovado por edital público, o que gerou sérias discussões sobre o fomento às artes no país. Por outro lado, isso reforçou, de certa forma, a levar a dança a um patamar nunca antes alcançado: ao status de uma arte representante da produção cultural e artística do país, tão importante para ser subvencionada quanto a música, a ópera ou as artes plásticas, em um momento político em que o país necessitava auto-afirmar sua estima, nele e no exterior, devido às graves consequências sociais, políticas e econômicas da chamada Grande Depressão de 1930 (PHILP, 1998).
As danças nacionalistas de Graham, da chamada ‘fase Americana’ (Americana period) (THOMAS, 1995) - compreendida de 1934 à 1944 - podem ser consideradas como um meio  que auxiliou a auto-afirmação da identidade nacional dos Estados Unidos. Cumpriram essa tarefa através de trabalhos como, por exemplo, Appalachian Spring (1944) e Frontier (1935), conhecidos nacional e internacionalmente, tidos pelos americanos como obras representantes da cultura americana, onde os sujeitos se reconhecem nesses trabalhos.
Ao contrário do que Robatto (1994) considera a respeito da relação entre dança e ideologia, nota-se que Graham não soçobrou em seus trabalhos. Com sucesso, ela construiu danças com temas relacionados a um ‘passado mítico’ americano, trazendo referências à consolidação da fronteira e da formação do país, reforçando o mito do pioneirismo, sob a visão do próprio pioneiro. Dessa forma, Graham reforçou o sentimento nacionalista dos indivíduos, interpelando-os como sujeitos americanos: suas danças enalteceram a identidade nacional, sendo levadas ao patamar de obras artísticas representantes da cultura nacional americana.
A dança tem o poder de mobilizar o público, ou, em outras palavras, fazê-lo sentir-se parte do que está vendo, através do que Franko (2002) vai chamar de ‘poder de interpelação’, conceito que vai tomar do filósofo Louis Althusser. O autor explica que a dança consegue ‘chamar’ o indivíduo da plateia como sujeito, através do que está sendo apresentado no palco. Exemplifica isso, citando a apresentação de uma companhia formada por bailarinos negros nos Estados Unidos, quando abordam a cultura negra e, dessa forma, conseguem incitar, ou melhor, interpelar os espectadores como sujeitos que fazem parte daquela cultura, quando são também negros, além do efeito de exortar a própria cultura que é tratada em cena.
De forma similar, Graham consegue interpelar os indivíduos americanos como sujeitos americanos, quando ela trata de temas que fazem parte da cultura americana, (re)construindo ou (re)afirmando a identidade americana do indivíduo. Vale salientar que, quando Graham trabalha com temas nacionais na ‘fase Americana’, ela exclui o massacre da natureza (animais, vegetação e os índios) e a desapropriação das terras dos índios pelos pioneiros. Nota-se que ela constrói esses trabalhos de dança com a visão do pioneiro, trazendo personagens (como a pioneira e o padre revivalista) que são consideradas símbolos nacionais, criadas num contexto político em que o país necessitava elevar e reafirmar sua auto-estima. 
Vários aspectos da cultura americana são suscitados nas danças de Graham, como o chamado ‘sonho americano’, que inclui uma visão aventureira e pioneira de exploração do espaço para além do território nacional, o que parece justificar ações hegemônicas de interferência americana em outros países/territórios. Inclusive, até de exploração e colonização de outros planetas, como iniciado pelo programa espacial americano, onde a NASA é representante de uma ação expansiva de fronteira, onde os EUA querem garantir o seu direito de pioneirismo colonizador. Essa atitude colonialista e expansionista é reforçada por obras artísticas, como filmes de ficção científica que abordam a exploração espacial e colocam os astronautas como heróis pioneiros da atualidade - sem que outras nações sequer questionem a legalidade ou consequências disso para o imaginário cultural como, por exemplo, a da suposta naturalidade e neutralidade de um processo colonizador frente a outros países.
Sendo assim, discorda-se do que Robatto (1994) expõe sobre a posição de ser um equívoco tratar de ideologias políticas ou panfletárias através da arte da dança. Os trabalhos de Graham, a título de exemplo, não são ‘arte menor’: elas serviram - e ainda servem - adequadamente aos propósitos doutrinários do governo americano. Suas danças exaltam a visão do pioneiro, além de omitirem e neutralizarem os aspectos negativos do processo de colonização. Vários desses trabalhos nacionalistas foram, inclusive, dançados na Casa Branca e para vários presidentes (GRAHAM, 1993), o que denota que a importância dessas danças para a cultura nacional no viés do soft power são consideráveis. É sabido, por exemplo, que os Estados Unidos, na Segunda Grande Guerra Mundial, utilizaram-se de estratégias de fontes de soft power em conjunto com o hard power, para criar sistemas de alianças com outros países que perduram, inclusive, até os dias atuais.
A dança e seu fazer está sempre relacionado a uma ideologia, no sentido proposto por Althusser (in ZIZEK, 1996). Para o autor, a ideologia se materializa nos atos do indivíduo. Como exemplo, quando um padre se ajoelha para rezar ou faz o sinal da cruz, esses gestos e ações são expressões - materializações - de sua ideologia religiosa. Similarmente, entende-se que o fazer dança é uma ação que exprime a materialização da ideologia do artista, suas crenças e forma de ver o mundo. Assim, as danças nacionalistas de Graham são frutos de sua visão de mundo, obras que se tratam de materialidades de sua ideologia.
Outro aspecto que deve ser considerado é que a subvenção direta de uma obra artística – um trabalho de dança, como no caso de Appalachian Spring (1944) de Martha Graham – pode consistir em uma forma do governo legitimar e justificar seu poder. Isto se dá, pois a arte é uma forma de promover educação e os Estados procedem conformando o modo de pensar de seus cidadãos através dos meios de educação e de comunicação em massa (MARTINS, 2007, p. 47). Pode-se afirmar que essa dança serviu - e serve ainda - como um meio de propaganda política para o Estado. Igualmente, pode-se dizer que Graham obteve respaldo político construindo danças nacionalistas (ALMEIDA NETO, 2009).

Nesse ponto, concorda-se com Robatto (1994): a dança é um fazer político e é sempre reflexo de uma postura política, quando o artista está consciente disso ou não. Acrescenta-se ao pensamento da autora a ideia de que o fazer dança é, em si mesmo, também ideológico, como já mencionado. É um produto das crenças de um indivíduo: uma materialização de sua forma de ver o mundo, e, no sentido proposto por Althusser (in ZIZEK, 1996), é uma prática situada no que ele vai chamar de Aparelho Ideológico (artístico, já que situado no campo das artes). Logo, discorda-se plenamente da autora quando ela diz que
A arte só tem penetração e força de comunicação se for autêntica e, para isso, antes de tudo, ela deve ser livre de qualquer dogma. Essa liberdade de criação não impede que o artista, como cidadão, exerça, paralelamente, uma militância política determinada, desde que sua obra extrapole os limites dessa política imediatista, como as obras de Garcia Lorca ou Brecht, dentro tantos artistas engajados. Os discursos proselitistas não podem ser impunemente aplicados na linguagem estética da arte (ROBATTO, 1994, p. 157).
Pensar como Robatto (1994) sobre a relação entre dança e política é confuso e contraditório, pois, em vários momentos, nota-se conflito em suas proposições. Além disso, a dança pode atingir vários propósitos por ser uma arte ambígua e passível, muitas vezes, de diversas interpretações e significações simultâneas e superpostas. 

A dança tem o poder de interpelar o indivíduo que a assiste como sujeito. Sua forma simbólica aciona entendimentos e significados para além da compreensão imediata do movimento, do texto, figurinos, cenário, luz ou outros recursos cênicos que podem vir a serem utilizados em um trabalho de dança. Ela aciona sentidos de identificação e, sendo assim, faz-se necessário refletir sobre a dança que se produz, pois, na perspectiva de um instrumento político, esse fazer tem suas razões, pode servir a propósitos e, ademais, tem suas consequências.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA NETO, Arthur Marques. Appalachian Spring: política e poder na dança. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. 2009. 120 fls. Disponível em: <http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/handle/ri/7861>. Acesso em: 14 fev.2016.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado (notas para uma investigação).  In: ZIZEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 105-142.

BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

COHEN, Selma Jeanne. Dance as a theatre art: source readings in dance history from 1581 to the present. Princeton: Princeton Book Company, 1992.

FRANKO, Mark. The work of dance: labor, movement and identity in the 1930s. Middletown: Wesleyan University Press, 2002.

GRAFF, Ellen. Stepping left: dance and politics in New York city, 1928-1942. Durham, London: Duke University Press, 1997.

GRAHAM, Martha. Memória do sangue: uma autobiografia. São Paulo: Siciliano, 1993.

NYE, Joseph F. The decline of America’s soft power. In: Foreign Affairs, mai/jun, 2004. Disponível em: <https://www.foreignaffairs.com/articles/2004-05-01/decline-americas-soft-power>. Acesso em: 06 out.2015.

MARTINS, Estevão C. de Rezende.  Cultura e poder. 2ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 

PEREIRA, Roberto. Gruas vaidosas. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições de dança 1. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1998. cap. 14, p. 217-240.

PHILP, Richard. Moments: impact of Martha Graham dance Company’s performance ‘Appalachian Spring’ in Coolidge Theater, Library of Congress, Washington, DC, where it premiered Oct. 30, 1944 – Editorial. Dance Magazine, Aug., 1998. Disponível em: <http://findarticles.com/p/articles/mi_m1083/is_n8_v72/ai_20986590>. Acesso em: 22 jun. 2008.

PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

ROBATTO, Lia. Dança em processo: a linguagem do indizível. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994.

RUBIDGE, Sarah. Political dance: is dance an appropriate medium for political debate asks Sarah Rubidge. Dance Theatre Journal, London, Vol. 7, n0. 2, p. 25, Fall, 1989.

THOMAS, Helen. Dance, modernity and culture: exploitations in the sociology of dance. London and New York: Routledge, 1995.

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