segunda-feira, 23 de outubro de 2017

INTOLERÂNCIA: GATILHO ATUAL


Jordan Campos, psicoterapeuta, teve uma postagem publicada na Revista Pazes, sobre a questão do ocorrido em uma escola em Goiânia: um adolescente mata dois colegas de classe e fere outros quatro. Disponível em: <https://www.google.com.br/amp/s/g1.globo.com/google/amp/https://g1.globo.com/goias/noticia/escola-tem-tiroteio-em-goiania.ghtml>. 

Sobre a postagem (disponível em : <http://www.revistapazes.com/11936-2/> ),
discordo, em grande parte, do psicoterapeuta. Logo, concordo no que tange alguns aspectos.

O ímpeto de matar - assim como o de morrer - é, obviamente, acompanhado por vários fatores.
Matar é também a materialização de uma morte de si: a impossibilidade da relação e da convivência com o Outro. É a eliminação da Existência por acreditar na impossibilidade do convívio, do diálogo e da tolerância. É o Não ao poder da argumentação.
O que falo - da mesma forma que o autor menciona - não é por um exame, diagnóstico ou avaliação psicoterapeutica: mas são afirmações de um adulto que sofreu - e sofre - bullying (“ing” - desinência de trauma no gerúndio, o que continua, como bem fala o autor do texto) por ser gay. 
Discordando ainda dele, ainda em parte: ele cita que é salutar “(...) aprender a vencer frustrações se SUBMETENDO a elas de forma sadia e com orientação”. Seriamente, fazendo uma leitura (bio)política (que difere diametralmente de “achismo”), essa não é, definitivamente, a saída. 
Ninguém deve aprender a se SUBMETER para ser aceito. Ter frustrações - e superá-las - se dá com o aprendizado do respeito: mas o respeito que lida com a noção de não dar o controle da sua vida aos outros. Estar no controle de sua vida é saber o que lhe é saudável: e isto não significa ser SUBMISSO AO OUTRO.
Respeito se constrói detectando territórios de poder: é diálogo. É saber que o direito meu precisa ser dialogado quando esbarra no seu. Dever é saber respeitar o espaço do Outro - e se fazer respeitado. Construção de respeito se dá no contexto em que se vive - assim, aqui posso talvez concordar com o psicoterapeuta: o adolescente vive num contexto que, aparentemente ou possivelmente, facilite, auxilie, promova ou desenvolva a intolerância.
Discordo, veementemente, noutro aspecto: mata-se por bullying, assim como por homofobia ou por uma discussão acalorada. Cada um sabe “onde o calo aperta” e, alguns, por não saberem o que é Respeito ou lidar com a falta dele, cometem crimes. Isso não é desculpa para homicídio ou suicídio! Isso não é apologia de violência, é somente um alerta para que nos curemos do ódio ao Outro que a vida nos imputa. Alguém que mata o Outro (ou se mata) é por não enxergar a possibilidade da Relação. E isso pode ser por qualquer razão: desde que se perca a tolerância.
Quando a vida perde o sentido, morre-se ou mata-se - literal ou metaforicamente. 
O garoto, em questão, é vítima - e causador - da anulação do diálogo. E saibamos: extirpar o diálogo é também um crime - literal e metafórico, pois rompe com a possibilidade de Vida (vida como estar EM COMUNIDADE, EM RELAÇÃO com o Outro).
Direito e Dever: saibamos dosar com a abertura ao Diálogo. E isso não é o que se vê hoje. 
A intolerância (movida por ideologias, principalmente) é o maior gatilho para os crimes da atualidade.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

INTERVENÇÃO GAY

Hoje testemunhamos um retrocesso na cultura brasileira. Um juiz legitimou uma "cura gay".
Abriu-se, desta maneira, o precedente legal de voltarmos ao tempo dos discursos que advogavam que um homossexual não era um Sujeito. 
Assim, novamente neste país, um homossexual é um mero indivíduo, acometido de uma doença.
Escolher a Vida, nesta situação, é arcar com todo o peso do preconceito, da exclusão e, principalmente, com o julgamento de que a minha sanidade, cultura e visão de mundo carecem de uma intervenção.
Hoje, como no passado recente, aos olhos da Psicologia e do Direito, eu sou um marginal, que leva uma vida anormal: agora, sob o viés dessas áreas de conhecimento, estou com a sanidade comprometida, com orientação sexual deturpada e, consequentemente, sou um praticante de atos de perversão: eu sou gay.
Para escolher a Vida, é preciso lidar com a transformação, desinência material da Morte. Explico: Se todos mudassem um pouco a forma de ver a Existência, talvez entendessem razoavelmente que estamos todos morrendo aos poucos, desde o momento em que nascemos. O maior câncer - a maior doença, incurável - que lutamos diariamente, é o Tempo. Uns têm mais, outros menos, por razões diversas.
Vendo assim, prego a liberdade: que as pessoas possam optar como vão seguir morrendo, enquanto têm tempo de viver. 
Um doente, como Pessoa, tem o direito de escolher seu tratamento: isso define a sua Humanidade.
Se doença é sinônimo de pouca saúde, escolho viver com a desinência da morte social, biológica e legítima. Escolho ser gay e recuso tratamento.
É tão difícil e desagradável se sentir deslocado do contexto que emerge, que espero não desistir de viver.


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

RESPIRAR COMO PROCESSO ARTÍSTICO (?)

A Afirmação:
"se arte é tudo o que provoca reação ou interação, tudo provoca reação... Até respirar pode ser Arte... Tudo pode ser Arte"
A frase foi de um ilustre desconhecido unfacefriend do Facebook, ao esculhambar um trabalho artístico,  exposto num museu que foi confundido por lixo por uma funcionária da limpeza. 
A título de explicação, o trabalho exposto era uma instalação, composta por garrafas de vinho, bitucas de cigarro e confetes e serpentinas, com o intuito de denunciar a banalidade da corrupção na Itália nos anos 80. Explico: muitos dos comentários elogiavam a faxineira, pois ela tinha feito um serviço ao museu, livrando-o do "lixo" (a tal instalação já mencionada).
Vamos seguir, tentando ser pedagógico a fim de ajudar os "coleguinhas" a pensarem um pouco sobre as opiniões expressas, recheadas de senso comum - e preconceito de sobra...

Arte depende do contexto e de interação com quem observa.
Se o ato de respirar for tratado como um processo artístico em um contexto, como uma proposta para que outras pessoas percebam e interajam com esse ato (com movimento, pensamento, reflexão ou até incômodo, entre outras formas de interação), faz sentido dizer que Arte é uma linguagem e envolve comunicação de uma ideia,  através de meios diversos, para todos os canais perceptivos do corpo de quem observa.
Até lixo pode ser Arte: qdo exposto como uma ideia e fim específico em um determinado contexto, irá representar simbolicamente, gerando um discurso sígnico.
Entender Arte por esse viés não é pra qualquer um, infelizmente. As pessoas estão acstumados a pensar que Arte só tem valor se for cara, bela e organizada formalmente por preceitos classicos. Principalmente, para aqueles que hierarquizam - de maneira tradicional - os objetos artísticos, valorando uns em detrimento de outros, pelo domínio do uso da técnica empregada. 
Antes, grandes cantores(as) eram vistos(as) como aqueles que detinham grande técnica vocal. Hoje, não adianta não expressar algo para além do excelente uso da técnica. 
Hoje, excelentes bailarinos não são somente os que giram mais ou sustentam a perna mais alto: eles podem ter - ou não - o domínio de movimentos difíceis, mas devem ser expressivos. Caso contrário, qualquer bom ginasta ou contorcionista seria "melhor" que um bailarino.
Há casos em que a função da Arte é política, denunciando a realidade de alguns contextos de forma não literal e evitando meios convencionais (não busca ser exposta em telas e molduras, em salas de cinema ou palcos de teatros, por exemplo). Nesse caso, ela é facilmente tratada como algo "menor" ou "sem qualidade". 
Goste você ou não, Arte é Arte: mesmo que se pareça com lixo. Lembre que, parecer-se com lixo, em se tratando de Arte, não é problema nenhum para o artista: talvez seja essa uma das propostas, entre tantas leituras que o objeto artístico provoca...Talvez ele queira que vc reflita sobre se lixo pode ser Arte; sobre uma disposição proposital de alguns elementos escolhidos que parecem esteticamente com lixo; ou, ainda, sobre o lixo de pessoa que você é, através da brincadeira com sua incapacidade cognitiva e reflexiva de enxergar naquela exposição uma obra provocativa relacionada a uma ideia especial - uma crítica daquele contexto.
Como eu disse, Arte é pra qualquer um. Mas nem todo qualquer - independente de classe social ou poder aqusitivo - consegue entender isso.
Por Arthur Marques. Em 15/09/2017. 

sábado, 16 de setembro de 2017

CENSURA EM TEMPOS DE TEMER

Este texto é de autoria de Renan Quinalha.

CENSURA MORAL À PEÇA "O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU"

Uma pessoa, chamada Virginia Bossonaro (Bolsonaro?) Rampin Paiva ajuizou uma ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de antecipação de tutela contra a peça "O evangelho segundo Jesus, rainha do céu", que seria exibida no SESC Jundiaí.

Conforme relatório da decisão judicial, o motivo do pedido de censura: a peça iria "de encontro à dignidade cristã" por apresentar "Jesus Cristo como um [sic] transgênero", "exponto ao ridículo os símbolos como a cruz e a religiosidade que ela representa".

A fundamentação do magistrado para deferir a tutela de urgência, ou seja, antecipadamente e mesmo sem ouvir a outra parte, merece análise detida.

Primeiro, ele afirma que o limite da liberdade de expressão é dado pelas figuras religiosas e sagradas. Nesse sentido, afirma ele, em sua decisão, que "muito embora o Brasil seja um Estado Laico, não é menos verdadeiro o fato de se obstar que figuras religiosas e até mesmo sagradas sejam expostas ao ridículo, alem de ser uma peça  de indiscutível mau gosto e desrespeitosa ao extremo, inclusive".

Acrescenta ainda o juiz que permitir que uma trans encene o personagem Jesus Cristo seria uma agressão a muitas pessoas: "em se permitindo uma peça em que este HOMEM SAGRADO seja encenado com um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas".

Fingindo agir de modo imparcial e laico, o que fica evidente ser uma mentira por conta da linguagem adjetivada e flagrantemente religiosa, afirma ele que não está impondo sua crença a terceiros, mas impedindo um ato desrespeitoso e de mau gosto que atinge o sentimento do cidadão comum, sem explicar quem seria esse tal "cidadão comum": "não se trata aqui de imposição a uma crença e nem tampouco a uma religiosidade. Cuida-se na vedade de impedir um ato desrespeitoso e de extremo mau gosto que certamente maculará o sentimento do cidadão comum, avesso a esse estado de coisa".

A seguir, ele emite claramente sua opinião dizendo que a peça é agressiva demais: "não se pode produzir uma peça teatral de um nível tão agressivo".

Por fim, na fundamentação ainda, ele afirma que "liberdade de expressão não se confunde com agressão e falta de respeito e, malgrado a inexistência da censura prévia, não se pode admitir a exibição de uma peça com um baixíssimo nível intelectual que chega até mesmo a  invadir a existência do senso comum, que deve sempre permear por toda a sociedade".

E, na parte dispositiva, o juiz proíbe a peça de ser exibida nesta noite ou em qualquer outro dia, sob pena de multa diária e crime de desobediência: a peça é "atentatória à dignidade da fé cristã, na qual JESUS CRISTO não é uma imagem e muito menos um objeto de adoração apenas, mas sim O FILHO DE DEUS", proibo a ré de apresentar a peça prevista para o dia de hoje (15 de setembro) e também em nenhuma outra data sob pena de multa diearia de R$ 1000,00 (um mil reais) sem prejuízo da tipificação do crime de desobediência.

Ora, segundo o magistrado, ser uma pessoa trans é algo "agressivo", "ofensivo", "desrespeitoso", "expor ao ridículo", "de extremo mau gosto" e de "baixíssimo nível intelectual".

Essa decisão é, do começo ao fim, um manifesto transfóbico. Não tem outro nome. Recheada da visão moral conservadora e tacanha do juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, a decisão exala sua opinião pessoal com uma série de adjetivos e palavras absurdas.

Agressiva, ofensiva, desrespeitosa, ridícula, de mau gosto e de baixíssimo nível intelectual, além de inconstitucional, é a decisão desse juiz.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Só em 2016, foram 144 assassinatos segundo a ANTRA. Um a cada 3 dias. A expectativa média de vida das pessoas trans é de 35 anos. Menos da metade da média brasileira, em torno de 75 anos.

Essa decisão acabou de dar uma enorme contribuição para aumentar a violência transfóbica. Trata-se de um atentado contra a dignidade e os direitos fundamentais das pessoas trans, além de violação expressa à liberdade de expressão e à liberdade artística.

Isso é mais grave do que o episódio do encerramento da mostra Queermuseu, pois não foi uma empresa privada que cancelou uma manifestação artística por ela patrocinada, foi o Poder Judiciário, que deveria assegurar direitos, que chancelou a transfobia de uma pessoa que ingressou com essa ação judicial.

É preciso dar um basta a essa escalada conservadora, é inadmissível que a patrulha moral do fundamentalismo religioso tome conta das escolas, dos teatros, das mostras de artes plásticas e demais instituições culturais. O Brasil ainda é um país laico, esse tipo de intervenção é inadmissível!

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

PERVERSÃO BOLSONAZI TEM EXPLICAÇÃO

O fenômeno 'bolsonazista': trata-se da própria materialização da 'razão cínica' citada e criticada Peter Sloterdijk (2011), que se resume na máxima: "eles sabem o que fazem e, mesmo assim, continuam a fazer".

Interessante essa análise psicológica: Bolsonaro representa - como símbolo e politicamente - o 'desejo' sem nenhuma 'neurose' - a 'perversão' freudiana.  

E o desejo é o extermínio do Outro, que é identificado como aquele que não se enquadra, por qualquer razão, em um padrão socialmente imposto. 

Na verdade, trata-se somente de um discurso individualista (e nada cristão): é exterminar o que VOCÊ não aceita, não gosta e não tolera.

Esse discurso é travestido - cinicamente - por uma defesa dos bons valores morais 'cristãos' (unicamente pelo SEU entendimento de cristianismo), dos bons costumes e da boa tradição familiar também dita 'cristã', mas, esquecendo da tal bíblia os episódios de: incesto, de pais assassinando filhos, de poligamias... entre outras passagens curiosas.

Sem mencionar que as maiores igrejas representantes do cristianismo dizimaram milhões de pessoas em guerras santas, nas fogueiras da Santa Inquisição e, na atualidade, seus representantes são acusados de corrupção por desvios, lavagem de dinheiro e sonegação de impostos e crimes de estupros e pedofilia. Mas, esqueçamos esse aspecto tenebroso do cristianismo. Ops... Desculpem-me: JAMAIS DEVEMOS ESQUECER. 

É bom também não esquecer que há idiotas - como o suposto cantor Zezé de Camargo,  que advoga publicamente que não sofremos uma ditadura no Brasil, mas um "militarismo vigiado" e que, por essa razão, o número de pessoas torturadas e mortas pelo regime foi  "irrelevante" frente aos números de outros países que supostamente são uma "verdadeira didatura". Ainda, alguns artistas conseguiram se exilar para não serem mortos e torturados, então...Foi mera bobagem e isso não justificaria elevar o estatuto dos chamados "anos duros" no Brasil para "ditadura".
Pena que as famílias de parentes mortos e torturados não podem concordar com isso, não é, Zezinho? Mas você não tem a devida cognição para lidar com essa informação que presume entendimentos de política, história, opressão: sua "Arte", pouquíssimo engajada e acrítica não exige essa demanda de informações. Logo, é compreensível que esse pensamento tenha sido proferido por você. Fica uma dica: cala a boquinha, em respeito aos parentes de vítimas de tortura, desaparecidos e mortos.

Curiosamente, os que aplaudem hoje o Zezé de Camargo por sua equívoca colocação e, logicamente, pela afinidade ideológica que prega uma volta ao militarismo no Brasil - diga-se "a ordem", que é exatamente o extermínio do Outro através da coerção - clamam por Bolsonaro nas eleições presidenciais para 2018. 

E Bolsonaro tem como grande ídolo Ustra, o maior torturador da história da ditadura no Brasil. Zezé e Bolsonaro: que dupla dinâmica. Já vejo até o nome do hit do CD:  "Tá ruim, mas piora".

É perversão personificada. É razão cínica, que emerge sem pudor, assumida, e orgulhosamente declarada. É o fim da neurose freudiana.

Em suma, chama atenção a análise do psicólogo Rui Melo (apud CRUZ, 2017), nesse ponto:
"Bolsonaro instiga a perversão que existe em cada um de nós. Todos nós temos um componente perverso".
Assumir a perversidade é sinal de que o tal cristianismo eatá deturpado e sendo pregado em formas incrivelmente intolerantes, como nunca vistas antes: basta notar os ataques de traficantes convertidos em fundamentalistas de igrejas neopentecostais contra lugares de culto de religiões de matriz africana no Rio de Janeiro. Seus ataques são motivados pelas ações proselitistas dessas igrejas evangélicas, que pregam o embate - e, pior que isso - estão legitimadas por um governo do estado do Rio de Janeiro assumidamente evangélico neopentecostal, bispo e dono de uma instituição religiosa dessa linha ideológica, que não interfere nos crimes de violência religiosa intolerante.

Estado de guerra. O que voga é o extermínio. Sem neurose.

Fonte:

CRUZ, Maria Tereza. Bolsonaro? Freud explica. Yahoo Notícias. 12 set.2017. Disponível em: .<https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-freud-explica-140154590.html>. Acesso em 13 set.2017

SLOTERDJIK. Peter. Crítica da razão cínica. Relógio D'Água Ed, 2011.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

ZOOFILIA E ARTE EM VAREJO

Você achou mesmo que Cena do Interior II (óleo sobre tela, 120 x 100 cm, 1994. Disponível em: <http://www.adrianavarejao.net/pt-br/cena-de-interior-ii>. Acesso em 11 set. 2017) de Adriana Varejão é repugnante e imoral por "fazer apologia" de zoofilia?
Vamos perder alguns minutos na tentativa de fazer uma utilidade pública. Em se tratando de Arte,
  1. Nunca "recorte" uma pequena parte de uma obra: veja-a em sua totalidade e sempre contextualize;
  2. Conheça, de preferência, o conjunto da obra de um artista para formar uma pequena ideia do que ele costuma tratar;
  3. "Gosto" não é parâmetro de avaliação. Se você 'gosta' ou 'desgosta' de algo, esse problema é apenas SEU (e não do artista);
  4. Um discurso imagético não se trata sempre de uma "apologia": pode ser exatamente o contrário disso (denúncia/crítica) ou, simplesmente, um reflexo da realidade;
  5. Uma das funções da Arte é provocar REFLEXÃO. Para isto, o artista pode se valer de muitos artifícios (incomodar, por exemplo, é muito comum);
  6. O "belo" é altamente relativo...
  7. ...e a lista de 'dicas' é enorme, tá? E vale ressaltar: NÃO sou especialista ou crítico de Arte. Mas mesmo que você NÃO goste, Adriana Varejão é uma das artistas visuais brasileiras mais bem conceituadas por, justamente, denunciar signicamente através de sua arte - um dispositivo de representação - a violência em processos de assimilação cultural, principalmente através de colonização.
Paulo Herkenhoff (apud ZENARO, 2012), ex-diretor cultural do MAR (Museu de Arte do Rio), explica:
Adriana Varejão se detém em questões como a patologia do Barroco, a presença de um longo processo de influência da China na cultura brasileira e os traumas do processo de expansões colonial e dos encontros consequentes aos descobrimentos, como a uma tendência unicificante do mundo [...]. O que era esquecimento e opacidade na história se torna visível. A cartografia agora é violência. O processo de presentificação do passado é uma nova transparência. Esse é o seu nível sutil de politização da arte, distante da vassalagem ideológica. Cada tela é uma produção de evidências, no agenciamento da história.
E, mais importante ainda, concordando com Herkenhoff (apud ZENAR, 2012):
[...] A obra de Varejão trata da interação de planos de representação: a história da arte serve para rever criticamente a pretensa totalidade da história que molda e é moldada pela arte.
Pesquisa, gente. Adriana Varejão é "bafônica". A arte de Varejão num é "safadeza" ou "zoofilia": ela, politicamente, quer é que a gente reflita e nunca esqueça que a colonização não foi um processo "bacaninha" que foi realizado somente por gente "do bem". O tal "povo brasileiro" - eu e você, nós todos - somos todos descendentes de vítimas de um violento processo de assimilação cultural.
E Varejão é também brasileira. Varejão nos representa, em especial, na exposição "Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira" em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, promovida pelo Santander Cultural, com a obra "Cenas do Interior II" (1994). Infelizmente, a exposição foi cancelada por protestos tanto na instituição quanto nas redes sociais (Vide <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/santander-cultural-cancela-exposicao-queermuseu-cartografias-da-diferenca-na-arte-brasileira-21807796.html>. Acesso em 11 set. 2017).
Sobre esta questão, Varejão - ela mesma - de maneira interessante e aparentemente profética, parece estar ciente de que a arte é refém do mercado e de instituições. Já em 2009, a artista fala, em entrevista para a dissertação de mestrado de Fátima Cerqueira (2009, p. 161-162), o seguinte:
[...] Então, eu me sinto um pouco anacrônica, o tempo todo, eu tenho um complexo danado, porque é super marginal pintar. É assim, eu não sou prestigiada por... são pouquíssimos curadores que prestigiam, principalmente os ligados às instituições. A pintura vira uma arte muito voltada pro mercado. Tudo bem que você está presente em galerias importantes, em coleções importantes, porque todo mundo prefere comprar a pintura ainda. Mas em termos institucionais e de curadoria, de curadores e instituições, esse prestígio é muito pouco atualmente da pintura.
Diante da importância política da obra de Adriana Varejão, sabe o que é repugnante e imoral? O discurso reacionário estúpido e acrítico vigente, que impregna e repercute midiaticamente e que, consequentemente, emergirá em sucessivas gerações.
Por Arthur Marques. 11/09/2017.

REFERÊNCIAS:
CERQUEIRA, Fátima Nader Simões. Memória e persuasão na pintura de Adriana Varejão. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em artes, Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória-ES, 2009. 174 f. Disponível em: <http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_3576_disserta%E7%E3o%20MESTRADO.pdf>.

Website de Adriana Varejão. Disponível em: <http://www.adrianavarejao.net/pt-br/category/categoria/pinturas-series>. Acesso em 11 set. 2017.
ZENARO, Mariana. Adriana Varejão: Mares, vísceras e novas narrativas de nossa história. Postado em 24 de novembro de 2012. Disponível em: <https://revistacontemporartes.blogspot.com.br/2012/11/artes-plasticas-nao-e-questao-de-talento.html?m=1>. Acesso em: 11 set.2017.


sábado, 26 de agosto de 2017

Corpo que nos une (?)

Acho importante compartilhar a reflexão com vocês.

Acho ótimo o Grupo Corpo, uma das maiores companhias de dança do Brasil (se não a maior) ter criado um espetáculo com inspiração na Umbanda e no Candomblé. "Gira" (2017), Grupo Corpo

Vamos lá: O que me chama a atenção é somente o fato de que somos um país tão colonizado que, sendo uma das maiores cias de dança do Brasil, e tendo sido criada nos anos 70, somente AGORA é que o Corpo se (pre)ocupa com um tema tão brasileiro e, mais curioso ainda: dando um tratamento do assunto como algo "exótico".
Agora há pouco, o próprio Pederneiras assume no noticiário de hoje que esse era um tema que ele não conhecia: ele teve que estudar e se aproximar do candomblé e da umbanda para realizar o trabalho.
— Tivemos que frequentar alguns terreiros de candomblé e umbanda para aprender sobre o assunto. Éramos completos ignorantes. Exu é considerado o orixá mais humano, e tudo que está relacionado a movimento na Terra passa por ele — conta Rodrigo, o coreógrafo, que, durante a pesquisa, encantou-se pela umbanda e virou adepto. (ESPINOZA, Patrizia. "Grupo Corpo homenageia exu em novo espetáculo". Jornal o Globo, Caderno Rio Show. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rioshow/grupo-corpo-homenageia-exu-em-novo-espetaculo-21746824>. Acesso em 26 ago.2017).
Fico confuso. Fico feliz por ele e, ao mesmo tempo, triste por me reconhecer como brasileiro - como mais um entre tantos e como o próprio Pederneiras - que não conhece uma questão que faz parte da cultura popular, a exemplo de manifestações como a Umbanda e o Candomblé, tão presentes em boa parte dos estados brasileiros.

Reflito: ainda tem gente que abre a boca pra dizer que não temos uma dívida histórica com os negros - como se nós mesmos não fôssemos mestiços. O preconceito faz parte da nossa história como brasileiros.

Quando umbanda e candomblé são tratados como assuntos "exóticos" (ex-óptico: distante do olhar, diferente) por qualquer brasileiro que seja - é preciso reavaliar e perceber que há algo de MUITO errado ocorrendo - e há muito tempo - na nossa educação e na nossa cultura. Por que ela é negada? Quais os entraves para se notar que há questões que simplesmente não conhecemos porque são tratadas como externas e invisíveis?

Parabéns ao Grupo Corpo. Entretanto, o fato de "Gira" ser um espetáculo de dança que só emerge em 2017, mais de 40 anos depois da criação do Grupo, como um trabalho do repertório de uma companhia dita brasileira e que, inclusive, funcionou por todos esses anos por subvenção pública direta (meu dinheiro e seu dinheiro), é de se atentar para as questões políticas disso: a arte é um espelho necessário que reflete diretamente o contexto. Explica-se: O espelho tá refletindo uma imagem muito desagradável, feia, ruim... Esse contexto precisa ser (re)examinado e nossas atitudes dentro dele precisam ser (re)adequadas.

Estamos mal como "brasileiros": precisamos nos reinventar... Será que poderemos continuar a defender a hipótese de que a cultura é algo comum e que nos une? Não seríamos apenas povos muitos - e diversos - que dividimos um mesmo território? E, se nem temos a coragem e a boa vontade de cumprimentarmos e conhecermos um pouco o nosso vizinho, como dizer que a cultura nos une?

Brasileiros, façamos o favor: assumamos nosso lado "vira-lata"...Ser mestiço tem suas vantagens: como se sabe, como vira-latas não adoecemos facilmente, principalmente, se a cura é conhecida e atende por dois nomes: educação e cultura.

Arthur Marques. 26.08.2017
arthur_marques@yahoo.com.br

segunda-feira, 17 de julho de 2017

O TEMPO RESOLVE

O tempo resolve:
 ferida inflamada, 
queda de cabelo, 
roupa da moda,
 relógio parado, 
saudade de entes queridos, distantes...Ausentes. 
Inteligência e prudência, 
confiança, 
esquecimento,
 des...prendimento, des...culpa, des...gosto, des...ânimo, des...ordem. 
Demência. 
Experiência. 
Relíquia, 
foto feia, 
cintura, 
ferrugem, 
fuligem, 
sombra na piscina, 
idade escondida, 
maré cheia. 
Alcoolismo, 
raiva, 
lagarta, 
garrafa pet. 
Doença, tristeza, amor, gentileza. 
Estrago, mofo, cupim.
Fim

*escrito em meio a uma memorável crise de chôro e ansiedade, dentre muitas outras...Na madrugada de 22.06.2016.

Arthur Marques.

#eu #poesia #pensamentododia 

sexta-feira, 14 de julho de 2017

DANÇA: RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E PODER

O texto a seguir foi publicado na Revista Dança, do Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA, v. 4, n. 2, p. 76-86, jul./dez. 2015. 
Dança: Relações entre Política e Poder

Arthur Marques de Almeida Neto
Professor do Depto. de Artes Cênicas - UFPB
Doutor em Comunicação e Semiótica - PUC-SP
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Estudos Contemporâneos Avançados em Dança - UFBA
Licenciado em Dança - FAV-RJ

Resumo
A relação entre dança, política e poder é considerada como parte da própria história da dança. A sua evolução como arte cênica promove exemplos variados de como ela esteve – e está – conectada com aspectos políticos e de (re)a rmação de poder, seja qual for o sistema de governo. O argumento revisa alguns exemplos que explicitam esse relaciona- mento. Além disso, considera a necessidade de se produzir dança tendo em vista as pos- sibilidades que esta arte proporciona, enfocando a interpelação de sujeitos que constrói relações com processos identificatórios. Nesse viés, a dança exerce poder quando usada como instrumento político, estando devidamente conectada a cultura de um grupo cultural ou Estado. Assume-se o fazer da dança como a materialização de um projeto ideológico e reflete-se sobre as consequências, razões e propósitos do seu uso como um sistema que aciona sentidos de identificação.

Palavras-chave: Dança; Política; Poder; Identidade; Ideologia.

A arte da dança é passível de construir relações com processos identificatórios. Isso implica que, como expressão artística, a dança pode estabelecer relações diretas com sujeitos e ser um meio para reafirmar a identidade de um grupo cultural, apresentando implicações políticas e de poder. Propor um trabalho de dança com aspectos de uma determinada cultura pode fazer com que o indivíduo que assiste se reconheça como sujeito participante dessa cultura, estratégia identificatória tratada pelo teórico americano Mark Franko (2002) como poder de interpelação. Ele consiste na capacidade que a dança tem de interpelar indivíduos como sujeitos de um grupo cultural.

No argumento que se segue, concorda-se com Bourcier (1987) e Portinari (1989) ao assumir que produções em dança da Renascença francesa exemplificam como a dança foi instrumento usado com a finalidade de enaltecer o monarca, colocando-o como personagem em evidência com poder acima de tudo e de todos, em especial na corte de Luis XIV. As danças da corte desse período também faziam parte de um jogo social em que seus membros - cortesãos e aristocratas - eram peças importantes. Como prática social, a dança era parte da educação do cortesão, e nos salões dos castelos, através das danças dos bailes, oportunidades eram promovidas para que os nobres pudessem se aproximar, conhecerem-se e resolverem arranjos, como firmamento de alianças políticas e casamentos reais. A dança interpelava os indivíduos como sujeitos distintos, conectando-os como participantes do jogo social da corte. 
As danças nacionalistas de Martha Graham das décadas de 1930 e 1940 são também citadas como exemplos do uso da dança para construção de processos identificatórios através da interpelação. Graham trabalhou com aspectos da cultura americana em suas danças desse período, conectando indivíduos como sujeitos pertencentes à cultura nacional. Elas são criadas em um momento histórico de crise política, social e econômica, em que os Estados Unidos e a cultura americana precisavam urgentemente de reafirmação (PHILP, 1998). Essa atitude é compreendida como uma estratégia ideológica, no sentido proposto pelo filósofo Louis Althusser (in ZIZEK, 1996), quando a ideologia é entendida como um fazer de acordo com as crenças do sujeito e sua materialidade é expressa através de suas ações. 
Reflete-se sobre o uso da dança e suas consequências como um instrumento político para a reafirmação de identidades, ao auxiliar na construção de processos identificatórios, através da interpelação. Ainda, chama-se a atenção sobre a responsabilidade do artista quando o fazer da dança é considerado como uma materialidade da ideologia: um fazer que se conecta com as crenças e os valores de um sujeito.
Dança e nacionalismo
A relação entre a arte da dança e política nacionalista é tratada como algo que existe desde antes do estabelecimento da dança como uma chamada arte teatral ou espetacular  (BOURCIER, 1987; COHEN, 1992; PORTINARI, 1989). 
Na Renascença francesa, para os membros da corte e da classe aristocrática, a dança era uma prática social que fazia parte das festas nos salões dos castelos e da própria educação do cortesão, que precisava saber dançar para se integrar socialmente. Ela era um elemento importante na rede social: suas criações eram geralmente motivadas por razões políticas (exemplos: arranjos de casamentos reais para alianças entre reinos, enaltecimento da figura do rei e/ou do país para a construção de identidade nacional, entre outras). 
Os balés da corte passam a ser dançados por profissionais, ao invés dos nobres cortesãos, transformação gradual que acontecia nos próprios salões dos castelos, dado o incremento dos passos pelos mestres da dança que também organizavam os bailes da corte. No final do século XVIII, o rei Luís XIV abre os palcos dos teatros franceses para que as danças da corte - agora realizadas por profissionais - pudessem ser realizadas.
Diferenciar a dança que o povo e os membros da corte realizavam da dança praticada por profissionais nos teatros foi uma estratégia que a alçou ao patamar de uma arte teatral ou espetacular. Essa mudança teve consequências para o entendimento de dança, inclusive, que ainda se tem hoje: a que é feita pelo povo é popular, e a dança dos teatros, arte, algo que diferencia, distancia, hierarquiza e menospreza a dança realizada pelo corpo que não é especialista.
A dança teatral ou espetacular precisava ser estrategicamente separada da dança feita pelo cortesão ou pelo povo, pois ela, como um instrumento ideológico, era uma representante simbólica do poder absolutista.
A paixão de Luís XIV pela dança e por tudo o que ela representava enquanto registro simbólico das relações estratificadas de poder em seu reinado era tanta, que, em seu primeiro ano de reinado, propicia um dos mais importantes feitos na história desta arte: a fundação da Academia Real de Dança, em 1661 (PEREIRA, in PEREIRA e SOTER, 1998, p. 223).
Como expressão artística, ela serviu a propósitos políticos nacionalistas para a corte francesa exortando o poder real, de forma adequada. A dança teatral na França renascentista colaborou com o sistema político vigente, através de temas que enalteciam o monarca. Nesse aspecto, ela lidou estreitamente com uma política nacionalista e com uma ideologia que reforçava os valores do sistema de governo vigente. Entretanto, nem todos concordam que a dança como arte possa tratar bem dessas questões, sem que seja considerado um equívoco. Lia Robatto (1994, p. 157), diz: 
Não acredito que os trabalhos artísticos, forjados em molde de uma política cultural obrigatória, possam contribuir para seus fins doutrinários. Vide os equívocos da arte sob o controle do sistema político de poder da era Stalinista, da Revolução Cultural Chinesa ou do Macarthismo.
Para a autora, a arte não deve contribuir com fins doutrinários e se torna equivocada quando serve a propósitos e sistemas políticos. Entretanto, levando em consideração o que Robatto (1994, p. 157) aponta, nota-se que a dança pode ser um excelente meio para disseminar doutrinas ou posições políticas para os que estão na disputa do jogo do poder: ela é um veículo eficiente para se tratar de assuntos ou questões políticas, uma vez que dela podem ser apreendidos aspectos ideológicos ou mesmo doutrinários. Sarah Rubidge (1989), assim como Robatto (1994), explica porque também não concorda com essa visão:
A questão é se a dança é um meio apropriado para o debate político. Questões políticas são complexas e os argumentos que as circundam são sutis. Dança política (que eu quero dizer que são trabalhos de dança os quais apontam diretamente para assuntos políticos ou sócio-políticos, não trabalhos que os apontam obliquamente) tendem a circunscrever argumentos políticos. Isto talvez seja esperado pela dança que não é, pela sua própria natureza, um meio discursivo. Ao invés disso, ela comunica predominantemente através de meios não-verbais, através do movimento, através de imagens, através do som. Tais imagens podem ser extremamente poderosas, elas são mais ambíguas que as palavras e não são particularmente apropriadas para o uso em discussões onde idéias complexas são chamadas ao questionamento (RUBIDGE, 1989, p. 27, tradução nossa).
Mark Franko (2002) e Ellen Graff (1999) têm posições que parecem tangenciar as posições de Rubidge (1989) e Robatto (1994). Ambos citam algumas danças produzidas pela classe operária nos Estados Unidos, na década de 1930, influenciadas pelo socialismo russo. Alguns dos coreógrafos da década de 1930, principalmente em Nova Iorque, usaram o sistema técnico-estético que estava sendo forjado por Martha Graham, como uma fonte para construção do movimento para essas danças. Entretanto, para Franko (2002), eles não foram bem sucedidos, pois não conseguiram abstrair o suficiente na configuração dos trabalhos: ele afirma que essas danças da classe trabalhadora (workers’ dances) eram muito ‘literais’, o que talvez seja uma referência ao caráter informativo desses trabalhos de dança, ou por eles se mostrarem muito preocupados em expressar uma mensagem política de forma objetiva, para ser rápida e claramente entendida pela plateia.
O adjetivo ‘literal’ usado para qualificar essas danças soa, de certa forma, como algo pejorativo ou como se esses trabalhos fossem ruins ou de má qualidade, na leitura que se faz do estudo de Franko (2002). O autor deixa subentendido que tratar de assuntos políticos partidários na dança de forma literal e panfletária é considerado um erro, o que vem a ser uma ideia que concorda com o pensamento de Robatto (1994).
Contudo, ambos os autores não expõem que política panfletária ou partidária não é feita apenas de forma ‘literal’ ou direta. Há outras formas de se ter um discurso ideológico em um trabalho de dança. Franko (2002), assim como Robatto (1994), expõe que algumas políticas podem ser abordadas na dança - políticas de corpo, como as de gênero, de raça - conseguindo ‘mobilizar’ a plateia. Sobre esse aspecto,
A arte tem o poder de mobilização, pois ela é capaz de contagiar o público com idéias revolucionárias, desde que consiga, pela sua qualidade expressiva, comover esse público. Para isso, sua mensagem não pode estar atrelada a compromissos temporais panfletários e circunstanciais, pois a tornaria uma arte “menor”, subordinada a rótulos ou clichês panfletários, engajada a ideologias sectárias (ROBATTO, 1994, p. 157).
Como se observa, para a autora, apenas quando apresenta ou possui o que chama de ‘qualidade expressiva’, a dança consegue ‘comover’ o público. Comoção, logo, parece ser uma característica necessária para que haja mobilização da plateia. Questiona-se, portanto, o que seria uma qualidade expressiva? Como detectá-la? Nesse ponto, arrisca-se a dizer que o título do trabalho de Robatto (1994) faz sentido, quando subintitulado de ‘a arte do indizível’: a autora não define o termo que usa, deixando a característica da comoção resolver que dança tem ou não uma qualidade expressiva. Emoção subjetiva, uma comoção pode se dar de várias maneiras e pode atingir a muitos, mas não a todos, em todos os lugares e em todas as culturas. Logo, acredita-se que esse seja um discurso vago.
Outro ponto, não menos importante, é quando a autora diz que existe o que seria uma ‘arte menor’, mesmo quando utiliza a palavra entre aspas para suavizar o termo, para se referir à ocasião em que a arte tem objetivos políticos panfletários. Além de hierarquizar a arte, o uso do termo para designar uma arte panfletária parece também acarretar em prejuízo do entendimento das razões e dos contextos em que determinados trabalhos artísticos, em especial, de dança, foram criados. 

Robatto (1994) cita que as danças produzidas na China, na Revolução Chinesa, eram equivocadas. Discorda-se da autora, pois aqui se parte de outro ponto de vista: considera-se que essas danças serviram - e muito bem - aos fins doutrinários de Mao Tsé Tung. Elas conseguiram reforçar e reafirmar uma identidade nacional chinesa, segundo os anseios do partido comunista.

A arte, em especial, a dança, foi e ainda é um meio para o Estado promover a cultura.   Como um meio de auto-afirmação do sujeito pelo viés da identidade, a cultura é também uma forma política de promoção dos interesses diretos do Estado e de suas políticas, como a de gerar lealdade à ele (ou à nação) atuando como um fator de equação social através da identificação com a pátria e com os símbolos nacionais, consistindo em uma ideologia do nacionalismo cultural (ALMEIDA NETO, 2009).

A dança foi amplamente utilizada para encenar temas ou roteiros para propósitos políticos, como foi na Renascença francesa, responsável indireta por casamentos ou arranjos diplomáticos, ou, como já mencionado, para enaltecer os soberanos. Balés da corte (ballets de cour), como um gênero de espetáculo, deram origem ao profissionalismo na dança, e sua passagem dos salões da corte para os teatros a fez evoluir ainda mais como uma arte cênica. Posteriormente, a técnica e a estética do ballet também exaltou o império dos czares e, mais adiante, serviu aos propósitos do socialismo russo, mostrando a riqueza da cultura russa e, por consequência, a soberania e o poder da nação. 
De forma semelhante, a chamada Dança Moderna Americana, com os trabalhos criados por Martha Graham, em meados da década de 1930 até meados da década de 1940, nos Estados Unidos, serviu a fins políticos nacionalistas.
Martha Graham: política nacionalista e poder na dança
Appalachian Spring (1944) foi o primeiro trabalho de dança da história daquele país a ser diretamente subvencionado pelo governo americano, sem concorrer e ser aprovado por edital público, o que gerou sérias discussões sobre o fomento às artes no país. Por outro lado, isso reforçou, de certa forma, a levar a dança a um patamar nunca antes alcançado: ao status de uma arte representante da produção cultural e artística do país, tão importante para ser subvencionada quanto a música, a ópera ou as artes plásticas, em um momento político em que o país necessitava auto-afirmar sua estima, nele e no exterior, devido às graves consequências sociais, políticas e econômicas da chamada Grande Depressão de 1930 (PHILP, 1998).
As danças nacionalistas de Graham, da chamada ‘fase Americana’ (Americana period) (THOMAS, 1995) - compreendida de 1934 à 1944 - podem ser consideradas como um meio  que auxiliou a auto-afirmação da identidade nacional dos Estados Unidos. Cumpriram essa tarefa através de trabalhos como, por exemplo, Appalachian Spring (1944) e Frontier (1935), conhecidos nacional e internacionalmente, tidos pelos americanos como obras representantes da cultura americana, onde os sujeitos se reconhecem nesses trabalhos.
Ao contrário do que Robatto (1994) considera a respeito da relação entre dança e ideologia, nota-se que Graham não soçobrou em seus trabalhos. Com sucesso, ela construiu danças com temas relacionados a um ‘passado mítico’ americano, trazendo referências à consolidação da fronteira e da formação do país, reforçando o mito do pioneirismo, sob a visão do próprio pioneiro. Dessa forma, Graham reforçou o sentimento nacionalista dos indivíduos, interpelando-os como sujeitos americanos: suas danças enalteceram a identidade nacional, sendo levadas ao patamar de obras artísticas representantes da cultura nacional americana.
A dança tem o poder de mobilizar o público, ou, em outras palavras, fazê-lo sentir-se parte do que está vendo, através do que Franko (2002) vai chamar de ‘poder de interpelação’, conceito que vai tomar do filósofo Louis Althusser. O autor explica que a dança consegue ‘chamar’ o indivíduo da plateia como sujeito, através do que está sendo apresentado no palco. Exemplifica isso, citando a apresentação de uma companhia formada por bailarinos negros nos Estados Unidos, quando abordam a cultura negra e, dessa forma, conseguem incitar, ou melhor, interpelar os espectadores como sujeitos que fazem parte daquela cultura, quando são também negros, além do efeito de exortar a própria cultura que é tratada em cena.
De forma similar, Graham consegue interpelar os indivíduos americanos como sujeitos americanos, quando ela trata de temas que fazem parte da cultura americana, (re)construindo ou (re)afirmando a identidade americana do indivíduo. Vale salientar que, quando Graham trabalha com temas nacionais na ‘fase Americana’, ela exclui o massacre da natureza (animais, vegetação e os índios) e a desapropriação das terras dos índios pelos pioneiros. Nota-se que ela constrói esses trabalhos de dança com a visão do pioneiro, trazendo personagens (como a pioneira e o padre revivalista) que são consideradas símbolos nacionais, criadas num contexto político em que o país necessitava elevar e reafirmar sua auto-estima. 
Vários aspectos da cultura americana são suscitados nas danças de Graham, como o chamado ‘sonho americano’, que inclui uma visão aventureira e pioneira de exploração do espaço para além do território nacional, o que parece justificar ações hegemônicas de interferência americana em outros países/territórios. Inclusive, até de exploração e colonização de outros planetas, como iniciado pelo programa espacial americano, onde a NASA é representante de uma ação expansiva de fronteira, onde os EUA querem garantir o seu direito de pioneirismo colonizador. Essa atitude colonialista e expansionista é reforçada por obras artísticas, como filmes de ficção científica que abordam a exploração espacial e colocam os astronautas como heróis pioneiros da atualidade - sem que outras nações sequer questionem a legalidade ou consequências disso para o imaginário cultural como, por exemplo, a da suposta naturalidade e neutralidade de um processo colonizador frente a outros países.
Sendo assim, discorda-se do que Robatto (1994) expõe sobre a posição de ser um equívoco tratar de ideologias políticas ou panfletárias através da arte da dança. Os trabalhos de Graham, a título de exemplo, não são ‘arte menor’: elas serviram - e ainda servem - adequadamente aos propósitos doutrinários do governo americano. Suas danças exaltam a visão do pioneiro, além de omitirem e neutralizarem os aspectos negativos do processo de colonização. Vários desses trabalhos nacionalistas foram, inclusive, dançados na Casa Branca e para vários presidentes (GRAHAM, 1993), o que denota que a importância dessas danças para a cultura nacional no viés do soft power são consideráveis. É sabido, por exemplo, que os Estados Unidos, na Segunda Grande Guerra Mundial, utilizaram-se de estratégias de fontes de soft power em conjunto com o hard power, para criar sistemas de alianças com outros países que perduram, inclusive, até os dias atuais.
A dança e seu fazer está sempre relacionado a uma ideologia, no sentido proposto por Althusser (in ZIZEK, 1996). Para o autor, a ideologia se materializa nos atos do indivíduo. Como exemplo, quando um padre se ajoelha para rezar ou faz o sinal da cruz, esses gestos e ações são expressões - materializações - de sua ideologia religiosa. Similarmente, entende-se que o fazer dança é uma ação que exprime a materialização da ideologia do artista, suas crenças e forma de ver o mundo. Assim, as danças nacionalistas de Graham são frutos de sua visão de mundo, obras que se tratam de materialidades de sua ideologia.
Outro aspecto que deve ser considerado é que a subvenção direta de uma obra artística – um trabalho de dança, como no caso de Appalachian Spring (1944) de Martha Graham – pode consistir em uma forma do governo legitimar e justificar seu poder. Isto se dá, pois a arte é uma forma de promover educação e os Estados procedem conformando o modo de pensar de seus cidadãos através dos meios de educação e de comunicação em massa (MARTINS, 2007, p. 47). Pode-se afirmar que essa dança serviu - e serve ainda - como um meio de propaganda política para o Estado. Igualmente, pode-se dizer que Graham obteve respaldo político construindo danças nacionalistas (ALMEIDA NETO, 2009).

Nesse ponto, concorda-se com Robatto (1994): a dança é um fazer político e é sempre reflexo de uma postura política, quando o artista está consciente disso ou não. Acrescenta-se ao pensamento da autora a ideia de que o fazer dança é, em si mesmo, também ideológico, como já mencionado. É um produto das crenças de um indivíduo: uma materialização de sua forma de ver o mundo, e, no sentido proposto por Althusser (in ZIZEK, 1996), é uma prática situada no que ele vai chamar de Aparelho Ideológico (artístico, já que situado no campo das artes). Logo, discorda-se plenamente da autora quando ela diz que
A arte só tem penetração e força de comunicação se for autêntica e, para isso, antes de tudo, ela deve ser livre de qualquer dogma. Essa liberdade de criação não impede que o artista, como cidadão, exerça, paralelamente, uma militância política determinada, desde que sua obra extrapole os limites dessa política imediatista, como as obras de Garcia Lorca ou Brecht, dentro tantos artistas engajados. Os discursos proselitistas não podem ser impunemente aplicados na linguagem estética da arte (ROBATTO, 1994, p. 157).
Pensar como Robatto (1994) sobre a relação entre dança e política é confuso e contraditório, pois, em vários momentos, nota-se conflito em suas proposições. Além disso, a dança pode atingir vários propósitos por ser uma arte ambígua e passível, muitas vezes, de diversas interpretações e significações simultâneas e superpostas. 

A dança tem o poder de interpelar o indivíduo que a assiste como sujeito. Sua forma simbólica aciona entendimentos e significados para além da compreensão imediata do movimento, do texto, figurinos, cenário, luz ou outros recursos cênicos que podem vir a serem utilizados em um trabalho de dança. Ela aciona sentidos de identificação e, sendo assim, faz-se necessário refletir sobre a dança que se produz, pois, na perspectiva de um instrumento político, esse fazer tem suas razões, pode servir a propósitos e, ademais, tem suas consequências.
REFERÊNCIAS
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PHILP, Richard. Moments: impact of Martha Graham dance Company’s performance ‘Appalachian Spring’ in Coolidge Theater, Library of Congress, Washington, DC, where it premiered Oct. 30, 1944 – Editorial. Dance Magazine, Aug., 1998. Disponível em: <http://findarticles.com/p/articles/mi_m1083/is_n8_v72/ai_20986590>. Acesso em: 22 jun. 2008.

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