Faz-se necessário investigar onde
reside a importância da prática da improvisação para se entender a validade de
sua aplicação para o desenvolvimento do potencial criador do profissional da
Dança Contemporânea em processos compositivos coletivos ou individuais.
Improvisação é, em primeiro lugar, uma atividade criativa. De acordo com Haselbach
(1988), improvisar significa executar algo, sob certas condições, não
previamente planejado. Pode ser entendida como a prática de se adaptar à
dificuldades (por exemplo: ao tema, ao grupo, ao objeto, à música, entre tantos
outros elementos), tornando-se ponto de partida para uma mudança individual ou
composição. Para a autora, improvisar significa também dar uma forma
espontânea. Haselbach (1988) diz ainda que
improvisar pode ser vista como uma motivação (estímulo, resultado, tensão de
necessidade) para o movimento: uma expressão do objetivo, que mais tarde se
torna significativo. Assim, o improviso pode ser visto como uma atividade
motivadora ou etapa preparatória ou, ainda, campo experimental para as
composições em
dança. Entretanto , além disso, ela também tem um objetivo
próprio: seu valor está no desenvolvimento da capacidade de criação espontânea
e da sua expressão.
A importância da improvisação está em
uma série de possibilidades que são acionadas a partir de sua prática. Pode-se
entender que, além das já citadas, a improvisação possibilita ou proporciona o
desenvolvimento da linguagem corporal, como atividade processual. Sobre esse
aspecto, Lola Brickman em “A linguagem do movimento corporal” (1989), descreve
que é mais valioso o processo de desenvolvimento em si que o eventual resultado
que se obtenha, porque não se trata de chegar a uma particular forma única, mas
às formas mais enriquecidas possíveis.
Parecendo concordar com Brickman (1989),
Katz (1998), quase uma década depois, apoiada em estudos da cognição e da
semiótica, explica que um corpo pode ampliar seu vocabulário motor quando
improvisa, desde que tenha “colecionado” previamente muitas e variadas
experiências ou conhecimentos motores. De acordo com a autora, a improvisação
atua de duas formas: tanto para aquisição de vocabulário, produzindo um outro
(a), quanto para buscar conexões inusitadas com o vocabulário corporal já
estabelecido (b). Dessa maneira, o corpo pode produzir através da improvisação
muitas formas e enriquecer as que já conhece.Katz (1998) traz à tona a discussão de que os coreógrafos dos anos 1990 retomam a improvisação como técnica de composição. Entretanto, a retomada da improvisação para a produção de dança naquela década (e ainda na atual, como pode se verificar nas criações de dança de hoje no Brasil e no exterior), não se trata, para a autora, uma mera nostalgia das experiências da Judson Church dos anos 1960, nos Estados Unidos; ao invés disso, coreógrafo contemporâneo é pensado como um DJ – um misturador autoral de materiais preexistentes – devido a um resultado evolutivo de contaminação da dança pela indústria cultural. Para o DJ, assim como para o artista contemporâneo e, principalmente, para o artista improvisador em dança, a improvisação é um fazer que opera com informações que estão organizadas. De acordo com Katz (1998), para improvisar de forma inovadora, um corpo precisa ter colecionado muitas experiências motoras e as experiências confirmam que quanto mais sólida for a formação deste corpo, mais apto ele estará para realizar as desarticulações que pretende, ou seja, a sua capacidade de inovar depende totalmente da sua habilidade em haver adquirido muitos conhecimentos motores.
Para fins de composição, um coreógrafo pode se manter como observador externo de experiências individuais e selecionar materiais nascidos neste processo (“editando”), adaptando-os ao seu projeto. De uma forma ou de outra, sendo improvisador ou selecionando material de improvisadores, o coreógrafo está agindo no momento, trabalhando com “material” preexistente internamente, organizando informações no instante mesmo da cena que se constitui.
Vale salientar que ainda existem trabalhos de dança que se baseiam unicamente na improvisação como forma de apresentação, como nas “jams” (rodas de improvisação), onde se apresentam os praticantes da chamada “contato-improvisação” (contact-improvisation), prática difundida por Steve Paxton, bailarino americano que criou essa linguagem de dança nos anos 1960, juntamente com outros artistas da Judson Dance Theater.
Christine Greiner, professora do Curso de Comunicação e Artes do Corpo da PUC/SP, autora de “O corpo: pistas para estudos interdisciplinares” (2006), diz que há um ponto em comum entre as artistas da performance e os improvisadores da dança. Ambos testam a gênese de movimentos no ato, a partir de uma categorização do mundo ao redor com eficiência, o que a autora chama de percepção direta, uma ação interna que se organiza praticamente no momento. Há uma diferença que ocorre no caso do bailarino que elabora uma coreografia e daquele que improvisa no instante presente: um organiza relações recorrentes, o outro, busca transitar pelos aspectos referenciais singulares da experiência em processo, em tempo presente. Ainda de acordo com Greiner (2006), no momento em que a performance acontece, ocorre uma ambivalência entre a pesquisa de toda uma vida e o modo como o fenômeno se dá a ver naquele instante. Por isso é que tantos artistas defendem que a performance não representa nada, apenas “apresenta” uma idéia, um conceito, algumas possíveis relações. Da mesma forma que na performance, a Dança Contemporânea também atualiza esse pensamento: de que a dança, desde os experimentos corporais do Judson Dance Theater, não representa, mas se apresenta.
Sobre esse aspecto, Jussara Sobreira Setenta, professora adjunta da Escola de Dança da UFBA, em “O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade” (2008), constrói sua tese. Para a autora, existem danças performativas e outras não performativas. Ela utiliza a teoria dos “atos de fala” de J. L. Austin, que parte da premissa que falar é uma forma de ação: há falas ou proferimentos que são constantivos (aqueles que descrevem e afirmam) e outros que são performativos (aqueles que se produzem enquanto ação da linguagem). Para Setenta (2008), utilizando o recurso do reducionismo interteórico para aproximar a linguagem verbal da linguagem corporal, existem danças performativas (aquelas que se comunicam uma idéia e a realizam no tempo presente, geralmente utilizando a transformação dos vocabulários da dança) e as danças não-performativas (aquelas que usam vocabulários preexistentes para apresentar uma idéia). Sobre a teoria de performatividade de Setenta (2008), as danças que utilizam a improvisação como um processo compositivo, são danças performativas, pois apresentam suas idéias no momento em que estão sendo dançadas, inventando no instante presente a sua forma de “dizer” com o corpo.
A composição
Outro ponto que não pode ser esquecido é o fato de que as produções
Sobre esse aspecto, concorda-se com a Profa. Dra. Jussara Miller, em “Os sentidos na dança: o movimento como vetor de emoções” (publicado nos anais do VI Seminário Interno do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ, em 2009), quando ela diz que o mapa de criação na cena contemporânea é flexível, e que a idéia de técnica como caminho e processo de investigação, não apenas como resultado almejado de habilidades possibilita a abertura para exploração de outros novos trajetos.
Todo trajeto é trilhado com parcerias importantes. Toda ficha técnica de um trabalho, por mais autônomo que seja, no sentido de que apenas conte com um criador-intérprete em cena, conta também com o auxílio de um outro que conjuga forças e experiência na composição artística.
Ainda de acordo com Miller (2009), a criação cênica contemporânea se revela cada vez mais um processo colaborativo na medida em que há ações criativas que envolvem diferentes colaboradores, pesquisadores-criadores que abordam o trabalho, em um resultado onde as fronteiras são “borradas” pela contaminação múltipla dos atuantes. Por conta dessa múltipla colaboração entre artistas que dançam, compõem trilha sonora, executam e concebem um figurino e um cenário, entre tantos outros possivelmente envolvidos, em uma miscelânea onde se constitui tarefa árdua delimitar o campo da autoria, Miller (2009) conta que se faz prudente e necessário para a criação o processo de escolhas entre todo o material que é vivenciado. “Editar” o material levantado pela pesquisa criativa, aqui utilizando um termo comum, atualmente, tanto para a música contemporânea quanto para o vídeo e o cinema.
A importância da improvisação para a dança, como estímulo para a criação, é ainda debatida por autores que escrevem sobre a Dança-educação. Marques (2003;2001), defende o uso da improvisação e da composição coreográfica inclusive como a forma de dança ideal para ser aplicada na escola, dadas as possibilidades de descoberta do movimento e do estímulo a criatividade que elas podem proporcionar ao praticante, associado ao estudo da coreologia (choreology), de Rudolf Laban. Para Marques (2001), Laban visava o domínio do movimento saudável e, o realce da harmonia pessoal e social promovido pela observação exata do esforço. A autora cita ainda o trabalho de Valerie Preston-Dunlop, discípula de Laban, que defende que o estudo da coreologia no ensino da dança enfatiza a possibilidade de discriminação, percepção e avaliação diferenciada da dança em suas várias modalidades: pesquisa, educação, escrita, performance e coreografia. Aqui, abre-se um parêntese para complementar o pensamento de Marques (2003;2001) para lembrar das pesquisas e estudos da professora emérita da UFRJ, Helenita Sá Earp. O trabalho de Helenita Sá Earp sobre os parâmetros da dança (Movimento, Tempo, Espaço/Forma e Dinâmica) são importantes para a formação do profissional de Dança Contemporânea - o bailarino-intérprete e/ou criador de composições individuais e/ou coletivas. Earp utiliza alguns aspectos da teoria de Laban, e , parecendo concordar e complementar os estudos do pesquisador alemão, no sentido de sua visão de dança como campo exploratório para o domínio do movimento.
A improvisação é uma estratégia que faz parte dos processos atuais de composição que mais influenciam o fazer artístico na cena contemporânea. Para efeitos do desenvolvimento do potencial criador individual e da composição coreográfica coletiva, é inquestionável a importância de um processo que envolva a improvisação juntamente com o conhecimento de parâmetros do movimento (tempo, espaço, peso, fluxo) e da dança (movimento, tempo, espaço/forma, dinâmica), relacionados a outros conhecimentos teóricos em disciplinas como a História, a Anatomia, a Cinesiologia, a Filosofia, a fim de que o profissional de dança possa articular conhecimentos prático-teóricos nas suas escolhas técnico-estéticas. Dessa forma, o artista terá condições de realizar suas criações próximo a convicções oriundas de pesquisas fundamentadas e referenciadas, através do devido apoio/suporte teórico. André Meyer de Alves Lima, professor adjunto do Departamento de Arte Corporal da UFRJ, em “Helenita Sá Earp e suas propostas para abordagens criativas da formação técnica de intérpretes na Dança Contemporânea” (1999), artigo publicado nos Anais do I Congresso de Pesquisa e Pós-graduação
Entende-se que tanto para preparar um corpo para as demandas da Dança Contemporânea - uma dança que exige versatilidade na formação corporal - quanto para desenvolver projetos compositivos em dança afinados com paradigmas da contemporaneidade, o estudo do sistema Laban juntamente com a prática da improvisação, constituem um trajeto estrutural na competência do profissional que lida com a arte da composição
01/10/2011.
LINK: https://www.academia.edu/2117579/Estudo_da_improvisacao_na_Danca_Contemporanea_para_o_desenvolvimento_do_potencial_criador_individual_e_da_composicao_coreografica
REFERÊNCIAS:
BRICKMAN, Lola. A
linguagem do movimento corporal. São Paulo: Summus, 1989.
GREINER, Christine. O
corpo: pistas para estudos interdisciplinares. 2ª. Ed. São Paulo:
Annablume, 2006.
HASELBACH, Barbara. Corpo,
improvisação e movimento: expressão corporal na Educação Física. Rio de
Janeiro: Ao livro técnico, 1988.
KATZ, Helena. O coreógrafo como DJ. In: PEREIRA, Roberto;
SOTER, Silvia (Orgs.). Lições de Dança 1.
Rio de Janeiro: UniverCidade, 1998. Pag.11-24.
LIMA, Andre Meyer de Alves. Helenita Sá Earp e suas propostas
para abordagens criativas da formação técnica de intérpretes na Dança
Contemporânea. Anais do I Congresso de
Pesquisa e Pós-graduação em
Artes Cênicas , 1999. Pag. 147-151.
MARQUES, Isabel. Dançando
na escola. São Paulo: Cortez, 2003.____. Ensino de dança na escola: textos e contextos. 2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MILLER, Jussara. Os sentidos na dança: o movimento como vetor de emoções. Anais do VI Seminário Interno do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ. 2009.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA,
2008.https://www.academia.edu/2117579/Estudo_da_improvisacao_na_Danca_Contemporanea_para_o_desenvolvimento_do_potencial_criador_individual_e_da_composicao_coreografica